Conjur
06 de agosto de 2010
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Consultor da União.
Viceja entre nós advogados públicos um nó górdio existencial que precisa ser desatado. Para quem advogamos? Para o Estado ou para o Governo? Menos do que duelo de serpentário, a pergunta revela um absoluto dilema, ou esconde falso problema. Meio caminho não há.
A ruptura entre Estado e Governo funda-se no corte metafísico que remonta à alegoria da caverna de Platão. Sugere dois mundos: um real, outro ideal. O corte platônico dá-nos a direção da tradição ocidental. É o núcleo de todas as fendas, antagonismos e bipolaridades que marcam a Teologia, a Ciência Política, a Psicanálise e o Direito.
Dizer-se advogado do Estado, e não do Governo, é mecanismo retórico sutil que coloca o advogado público acima do bem e do mal, do certo e do errado, do recorrente e do efêmero, do sempre e do “às vezes”. Ver-se como advogado do Estado é um “abre-te-sésamo” para todos os achismos e idiossincrasias. É a autorização para o uso das próprias razões, que se confundem com as razões do Estado. Qualquer semelhança com o ideário do autor de Mandrágora não é mera coincidência. É estar do lado do bem, da beleza, da verdade, do mundo onde não há conflitos, e nem responsabilidades. É o território perfeito para os especialistas em superficialidades. É a preocupação desleal com o procedimento, e não com o resultado.
Dizer-se advogado do Governo, e não do Estado, é judicioso exercício de coerência prática e de ética pragmática. É coragem. É admitir que a ineficiência da própria ação redunde na admoestação e na responsabilização dos órgãos de controle, isto é, das corregedorias e dos mecanismos de aferição de produtividade. E porque não existe advogado sem parte, inclusive no Direito Canônico, que prevê o “advogado do diabo”, e até nas burocracias da Inquisição, é frágil imaginar a defesa de um Estado quimérico que transcenda à couraça de um Governo real. O advogado do Governo, na visão dos serafins e querubins, é mero agente do convencimento pela força. Miopia maior não há. Além do que o sistema já contempla a cidadania que se revela no Estado por meio do Ministério Público. Não é por acaso que inúmeras ações há opondo Ministério Público e Advogado Público, embora a convergência de entendimento circunstancialmente também ocorra. Esta última trata-se, no entanto, de exceção, e não de regra.
E se o Estado é o filho do medo, na imagem de Hobbes, ou resultado do pacto social, na percepção de Locke, ou o instrumento da vontade geral, na intuição de Rousseau, também seria a fonte de todos nossos desconfortos, na leitura de Freud, que nos classifica como os descontentes com a civilização, origem de nossas ansiedades e fobias. O Estado também se revela numa sociedade civil real, que nega o estado de natureza, que explicita hegemonias e que organiza o dissenso e o desentendimento. Sempre, as necessidades são infinitas e os recursos são escassos. Por isso, e talvez só por isso, o conflito.
Para diminuir o atrito, a sociedade civil se organiza de várias formas, e a democracia parece ser a mais virtuosa delas. Os grupos se articulam, legitimam-se pelo voto, agem em nome do Governo. Outra forma não há. Numa sociedade democrática, o Estado é substancializado pelo Governo, que lhe dá vida. Quebrar o silogismo é desconhecer as regras do jogo. É artifício de eloquência para se situar acima de tudo e de todos. Estado sem Governo é metonímia que toma a causa pelo efeito, o possuído pelo possuidor.
E porque, na advertência de um autor espanhol, as virtudes se exercem, as normas se aplicam, as ordens se cumprem e os valores se estabelecem e se impõem, é hora de que nós, advogados públicos, reconheçamos quem nos recolhe honorários, dita estratégias e estabelece sanções pela negligência. É o Governo, ainda que democraticamente eleito, para desespero dos adoradores do Estado. Fora desta quadra, é o retorno à caverna de Platão, onde luzes não passam de sombras. É enganar-se a si mesmo, como Ema Bovary, personagem de Flaubert, para quem o ideal era o real, e a mendacidade a fuga da própria condição.
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