Correio Forense
22 de agosto de 2010
Por ARNALDO SAMPAIO DE MORAES GODOYConsultor da União, professor do programa de mestrado em direito da Universidade Católica de Brasília, professor assistente do Instituto Rio Branco
A ruptura entre Estado e governo funda-se no corte metafísico que remonta à alegoria da caverna de Platão. Sugere dois mundos: um real, outro ideal. O corte platônico dá-nos a direção da tradição ocidental. É o núcleo de todas as fendas, antagonismos e bipolaridades que marcam a teologia, a ciência política, a psicanálise e o direito.
Dizer-se advogado do Estado, e não do governo, é mecanismo retórico sutil que coloca o advogado público acima do bem e do mal, do certo e do errado, do recorrente e do efêmero, do sempre e do às vezes. Ver-se como advogado do Estado é um abre-te-sésamo para todos os achismos e idiossincrasias. É a autorização para o uso das próprias razões, que se confundem com as razões do Estado. Qualquer semelhança com o ideário do autor de Mandrágora não é mera coincidência. É estar do lado do bem, da beleza, da verdade, do mundo onde não há conflitos, e nem responsabilidades. É o território perfeito para os especialistas em superficialidades. É a preocupação desleal com o procedimento, e não com o resultado.
Dizer-se advogado do governo, e não do Estado, é judicioso exercício de coerência prática e de ética pragmática. É coragem. É admitir que a ineficiência da própria ação redunde na admoestação e na responsabilização dos órgãos de controle, isto é, das corregedorias e dos mecanismos de aferição de produtividade. E porque não existe advogado sem parte, inclusive no direito canônico, que prevê o advogado do diabo, e até nas burocracias da Inquisição, frágil imaginar a defesa de um Estado quimérico que transcenda à couraça de um governo real. O advogado do governo, na visão dos serafins e querubins, é mero agente do convencimento pela força. Miopia maior não há. Além do que, o sistema já contempla a cidadania que se revela no Estado por meio do Ministério Público. Não é por acaso que inúmeras ações há opondo Ministério Público e advogado público, embora a convergência de entendimento circunstancialmente também ocorra. Esta última trata-se, no entanto, de exceção, e não de regra.
E se o Estado é o filho do medo, na imagem de Hobbes, ou resultado do pacto social, na percepção de Locke, ou o instrumento da vontade geral, na intuição de Rousseau, também seria a fonte de todos nossos desconfortos, na leitura de Freud, que nos classifica como os descontentes com a civilização, origem de nossas ansiedades e fobias. O Estado também se revela numa sociedade civil real, que nega o estado de natureza, que explicita hegemonias e que organiza o dissenso e o desentendimento. Sempre, as necessidades são infinitas e os recursos são escassos. Por isso, e talvez só por isso, o conflito.
Para diminuir o atrito, a sociedade civil se organiza de várias formas, e a democracia parece ser a mais virtuosa delas. Os grupos se articulam, legitimam-se pelo voto, agem em nome do governo. Outra forma não há. Numa sociedade democrática o Estado é substancializado pelo governo, que lhe dá vida. Quebrar o silogismo é desconhecer as regras do jogo. É artifício de eloquência para se situar acima de tudo e de todos. Estado sem governo é metonímia que toma a causa pelo efeito, o possuído pelo possuidor.
E porque, na advertência de um autor espanhol, as virtudes se exercem, as normas se aplicam, as ordens se cumprem e os valores se estabelecem e se impõem, é hora de que advogados públicos reconheçamos quem nos recolhe honorários, dita estratégias e estabelece sanções pela negligência. É o governo, ainda que democraticamente eleito, para desespero dos adoradores do Estado. Fora dessa quadra, é o retorno à caverna de Platão, onde luzes não passam de sombras. É enganar-se a si mesmo, como Ema Bovary, personagem de Flaubert, para quem o ideal era o real, e a mendacidade a fuga da própria condição.
Fonte: Correio Braziliense
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