Conjur
24 de setembro de 2010
Sacha Calmon é advogado tributarista, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.
O Supremo Tribunal Federal decidiu uma questão essencial envolvendo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a energia elétrica, seja ela hidráulica, eólica, atômica, a carvão ou gás, sejam os combustíveis líquidos e gasosos, além dos serviços de transporte (ferroviário, rodoviário, aquaviário, marítimo e aéreo) e de comunicações (telefonia fixa), que terá uma abrangência brutal na formação dos preços das mercadorias e serviços consumidos. Nas operações internas, cabe ao respectivo estado a totalidade da receita e, nas operações destinadas a outros estados (operações interestaduais), a receita é repartida entre o estado do destino e o da origem. Entretanto, o ICMS é fonte de variados conflitos entre os estados. Era para ser nacional, mas ficou para eles; era para ser neutro, sem isenções e reduções, mas tornou-se arma para partejar o desenvolvimento mediante incentivos fiscais — daí a guerra fiscal. A Constituição prevê que um estado, para dar incentivos, precisa da anuência dos demais (convênios). Caso contrário, serão ilegais. Nenhum respeita a Constituição, todos dão benefícios e todos impedem que os contribuintes se beneficiem dos alheios, anulando os benefícios dos outros. Quem leva a pior é o contribuinte.
A decisão da ministra do STF Ellen Gracie garante ao contribuinte de um estado (Minas Gerais e outros) se creditar do ICMS pago ao fisco do Espírito Santo por quem lhe vendeu a mercadoria e o incluiu no preço que ele desembolsou. Para o contribuinte mineiro, é irrelevante que o Espírito Santo devolva 70% do ICMS pago lá ao seu contribuinte. Deve prevalecer o princípio constitucional da não cumulatividade. Como o contribuinte mineiro saberá que a mercadoria capixaba goza de incentivo? Na briga entre o mar e o rochedo, a ministra, afetuosa, preferiu salvar os mariscos, os contribuintes. Em sua justificativa escreve a ministra: “Revendo os autos à luz do agravo regimental interposto pela empresa requerente, verifico que, embora a questão pudesse desafiar solução infraconstitucional, também apresenta consistente fundamentação constitucional, amparada em precedentes desta corte. É que o estado de Minas, inconformado com a inconstitucionalidade de crédito de ICMS concedido pelo estado de Goiás, teria glosado parcialmente a apropriação de créditos nas operações interestaduais, com isso ofendendo a sistemática da não cumulatividade desse imposto e a alíquota interestadual fixada pelo Senado Federal, ambas com assento constitucional”.
Apontando que a discussão é relevante, de índole constitucional, e que é necessário reconsiderar a decisão recorrida e conhecer do pedido de liminar, a ministra argumenta a seguir: “Há forte fundamento de direito na alegação de que o estado de destino da mercadoria não pode restringir ou glosar a apropriação de créditos de ICMS quando destacados os 12% na operação interestadual, ainda que o estado de origem tenha concedido crédito presumido ao estabelecimento lá situado, reduzindo, assim, na prática, o impacto da tributação. (...) Ainda que o benefício tenha sido concedido pelo estado de Goiás sem autorização suficiente em convênio, mostra-se bem fundada a alegação de que a glosa realizada pelo estado de Minas Gerais não se sustenta. Isso porque a incidência da alíquota interestadual faz surgir o direito à apropriação do ICMS destacado na nota, forte na sistemática de não cumulatividade constitucionalmente assegurada pelo artigo 155, parágrafo 2º, I, da Constituição, e na alíquota estabelecida em resolução do Senado, cuja atribuição decorre do artigo 155, parágrafo 2º, IV. Não é dado ao estado de destino, mediante glosa à apropriação de créditos nas operações interestaduais, negar efeitos aos créditos apropriados pelos contribuintes. Conforme já destacado na decisão recorrida, o estado de Minas Gerais pode arguir a inconstitucionalidade do benefício fiscal concedido pelo estado de Goiás em sede de ação direta de inconstitucionalidade (Adin), sendo certo que este STF tem conhecido e julgado diversas ações envolvendo tais conflitos entre estados, do que é exemplo a Adin 2.548, relator ministro Gilmar Mendes, DJ 15.6.2007”.
A ministra conclui que é descabida a pura e simples glosa dos créditos apropriados, ressaltando que “não se compensam as inconstitucionalidades, nos termos do que decidiu este tribunal quando apreciou a Adin 2.377-MC, publicada no Diário da Justiça em 7 de novembro de 2003, cujo relator foi o ministro Sepúlveda Pertence: as normas constitucionais, que impõem disciplina nacional ao ICMS, são preceitos contra os quais não se pode opor a autonomia do estado, à medida que são explícitas limitações. O propósito de retaliar preceito de outro estado, inquinado da mesma balda, não valida a retaliação: inconstitucionalidades não se compensam”.
Resta à corte seguir a ministra. O Poder Judiciário não é tão despiciendo como muitos julgam. Parabéns, ministra Ellen Gracie.
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