22 de julho de 2010
Sem unanimidade sequer entre procuradores, a proposta de dar às procuradorias de Fazenda Pública o poder de bloquear bens de devedores antes do ajuizamento das execuções fiscais divide também os juízes. Seminário que reuniu na sede da OAB do Rio de Janeiro, nesta terça-feira (20/7), representantes da advocacia e da magistratura mostrou que o projeto de lei que cria a chamada “execução fiscal administrativa” enfrentará dura resistência em todos os círculos do Direito. E dará espaço para muita lavação de roupa suja.
Se para opositores à ideia de que as execuções fiscais só devem entrar na Justiça depois de garantido o débito, o PL 5.080/2009 está cheio de contradições, dizem alguns. “Do que jeito que está é que não pode ficar”, afirma o juiz federal Marcus Livio Gomes, da 2ª Turma Recursal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, um dos mentores do anteprojeto levado pelo Executivo federal ao Congresso Nacional, hoje sob análise de uma comissão especial da Câmara dos Deputados.
A atual Lei de Execução Fiscal, a Lei 6.830/1980, foi eleita a grande vilã da baixa recuperação de créditos inscritos em dívida ativa, que no caso da União é de cerca de 0,99% “em um ano bom”, segundo o procurador-regional da Fazenda Nacional no Rio, Paulo César Negrão de Lacerda (ao lado). É ela e seu trâmite processual burocrático, de acordo com o juiz Marcus Livio, a responsável pelo estoque de 25 milhões de execuções fiscais federais paradas, metade do estoque total da Justiça Federal no país. O volume, diz ele, cresce a cada ano devido a uma taxa de congestionamento de 92%, verificada pela última publicação do programa Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, no ano passado.
O juiz também rebateu a crítica de que a OAB não foi chamada ao debate desde que a ideia da constrição administrativa começou a circular entre procuradores e juízes. “Eu mesmo convidei, por meio de ofício, o então presidente do Conselho Federal, Cezar Britto para participar de uma audiência. Ele sequer respondeu”, diz.
Se o tempo médio de tramitação de outros tipos de ação é de quatro anos nas cortes federais, de acordo com Marcus Livio, as execuções fiscais levam 11 para acabar. E é aí que, segundo ele, o projeto entra para atacar o problema, já que se a localização e constrição de bens fosse feita pelas procuradorias antes que as execuções chegassem ao Judiciário — fase esta que consome boa parte do tempo de tramitação —, caberia aos juízes somente julgar o litígio, e não dar despachos “sem cunho jurisdicional”, como os de buscas de garantias.
No entanto, esse entendimento vai no sentido contrário ao das últimas inovações feitas no Código de Processo Civil, que possui o modelo mais moderno de execução hoje, na opinião da juíza federal Maria do Carmo Freitas Ribeiro, titular da 8ª Vara Federal de Execução Fiscal da capital fluminense. “O juiz precisa ter envolvimento na execução, tanto que o CPC não aceita mais sentenças não líquidas”, diz. “Execução também é ato judicial”, defende.
A tributarista Daniela Ribeiro de Gusmão, do escritório Leoni Siqueira Advogados e integrante das comissões tributárias da seccional e do Conselho Federal da OAB, concorda com a juíza. “Se o próprio Judiciário apoiar essa medida, é porque não se vê como importante e neutro”, afirma. Para o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, a proposta tira o contraditório do Judiciário. “O projeto dá poderes quase absolutos a procuradores principalmente por causa da penhora online”, diz.
Maria do Carmo não reserva à LEF a culpa pelo fraco desempenho do fisco na arrecadação de débitos inscritos em dívida ativa. Para ela, o acúmulo de R$ 1 trilhão em créditos fiscais a serem cobrados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional também se deve à demora da Receita Federal em mandar os débitos para inscrição, o que obriga os procuradores a enviar as execuções imediatamente à Justiça antes que o direito prescreva. Ela também cita como agravante a falta de checagem de dados básicos, como trocas de moeda. “Já vi débitos de milhões de cruzados que viraram inscrições do mesmo número em reais, apenas porque a PGFN não converteu a moeda corretamente”, conta.
“O mesmo fisco que comete erros desse tipo é o que quer ter o poder de bloquear bens, dinheiro e aplicações financeiras sem o aval da Justiça”, critica o tributarista Luiz Gustavo Bichara, do escritório Bichara, Barata, Costa e Rocha Advogados, e membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-RJ. Ele lembra que 62% das cobranças contestadas no Conselho Administrativos de Recursos Fiscais, tribunal administrativo da Receita Federal, são derrubadas pelos contribuintes. “Podemos deduzir que mais da metade das execuções também estão erradas.”
Para o procurador-regional Paulo César Negrão, essa lógica é mero silogismo. “Os lançamentos errados passam pelo crivo do Conselho, e não se tornarão execuções”, rebate. Os restantes 48% dos autos de infração na Receita, segundo ele, nem são contestados administrativamente pelos contribuintes porque “eles já declararam ao fisco que os valores não foram pagos”. Da plateia, o procurador da Fazenda Nacional e diretor da Escola Superior da PGFN no Rio, Marcus Abrahan, completou: “Não são anulados 62% de todos os lançamentos, mas sim daqueles em que há contradição, o que é razoável.”
Mau exemplo
O “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” também estremece a confiança no projeto. Segundo a juíza Maria do Carmo, os mesmos procuradores que poderiam, de acordo com a nova proposta, verificar a prescrição das cobranças e arquivá-las antes do ajuizamento, são os que hoje recorrem contra decisões judiciais que declaram a prescrição intercorrente nas execuções – aquelas que ocorrem devido à falta de manifestação do fisco por mais de cinco anos durante o processo.
“O mesmo ocorre com contribuintes que desistem de embargos para aproveitar a não condenação em honorários no caso de parcelamento de dívidas pela Lei 11.941”, afirma. A lei, editada no ano passado, criou o chamado “Refis da Crise” e livrou os optantes pelo parcelamento de longo prazo da sucumbência obrigatória em caso de desistência de contestações a execuções fiscais em andamento. “Os procuradores continuam pedindo honorários mesmo com a previsão expressa na lei.” Segundo ela, esse tipo de costume prolonga a tramitação das execuções desnecessariamente.
De acordo com Negrão, não se pode generalizar o comportamento. “A insistência em recursos sem fundamentação legal é caso para ser analisado pela corregedoria”, diz. No entanto, ele contrapõe, os procuradores não poderiam deixar de recorrer em casos de contagem prescricional errada ou de honorários fixados abaixo do estabelecido em lei.
Considerada inaceitável pelos tributaristas, a constrição de bens pelo fisco sem aval Judiciário não é incomum, como lembra Marcus Livio. “Credores hipotecários podem tomar imóveis sem autorização judicial”, diz. “A prática também é permitida na liquidação administrativa de instituições financeiras, assim como está prevista no regulamento aduaneiro, que prevê o perdimento de bens ilegais.” Segundo ele, a nova lei daria ao contribuinte a vantagem de entrar com embargos contra o bloqueio enquanto ele ainda estivesse na esfera das procuradorias. “Além disso, a constrição administrativa cai se o juiz não a converter em penhora dentro do prazo legal.”
Outra vantagem vista pela PGFN para os contribuintes será a positivação em lei da chamada “exceção de pré-executividade”, instrumento usado pelos devedores na Justiça para provar que o pagamento cobrado já foi feito anteriormente. O recurso preliminar existe hoje apenas na jurisprudência. “Os próprios procuradores poderão, diante de uma reclamação legítima do devedor, anular a inscrição em dívida ativa”, afirma Negrão.
A comparação da constrição de bens pelo poder público com as feitas pela iniciativa privada sem o aval da Justiça coloca no mesmo patamar duas realidades diferentes, na opinião do tributarista Maurício Pereira Faro, do Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados. Por isso, o argumento de que a lei já dá a credores hipotecários o poder de tomar imóveis sem ação judicial não serve para justificar a penhora administrativa fiscal. “O protesto de débitos tributários em cartório, previsto no projeto, é a mesma coisa. No Direito Público não há liberdade de vontades, como no Privado, mas sim submissão absoluta e hipossuficiência do contribuinte”, afirma. “São títulos emitidos sem a concordância do devedor”, concorda a juíza Maria do Carmo Ribeiro.
Para Faro, medidas que tiveram o intuito de facilitar as execuções fiscais foram inviabilizadas pela própria PGFN. “O seguro garantia e a carta de fiança bancária para garantir os débitos discutidos se tornaram mais caros depois que a procuradoria criou restrições e onerou a emissão.” Outro complicador, na opinião do advogado, é a impossibilidade de se deduzir como despesa na apuração do Lucro Real os valores depositados em juízo.
Risco não calculado
A falta da aparelhamento das procuradorias é outro problema que preocupa o tributarista Gilberto Fraga, também membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-RJ. Ele afirma que a falta de pessoal de apoio pode comprometer o intuito de analisar administrativamente as exceções de pré-executividade e prolongar o bloqueio de bens indefinidamente. “O juiz, ao analisar a impugnação da constrição, não pode avaliar a liquidez do crédito, mas tem que ouvir a Fazenda primeiro. A Fazenda então pode pedir a prorrogação do bloqueio por 30 dias para checar se houve pagamento, período que pode ser prorrogado”, explica.
Outra crítica foi contra o Sistema Nacional de Informações Patrimoniais, o SNI, cadastro criado pelo projeto que reunirá informações sobre bens, renda e endereço de todos os contribuintes, disponível a todas as procuradorias do país. “A falta de cuidado de não mudar essa sigla mostra o desdém com a intimidade e a vida privada dos devedores”, diz Gilberto Fraga. SNI era a sigla do antigo Sistema Nacional de Informações, usado pelo governo militar durante a ditadura (1964-1985) para localizar atividades “subversivas” de grupos contrários ao regime.
“Nem me dei conta do peso que essa sigla poderia ter”, diz o procurador Paulo César Negrão. Segundo ele, a sugestão ao projeto veio da Associação dos Juízes Federais do Brasil, a Ajufe. Para ele, a resistência à implantação da execução fiscal administrativa no país vem justamente do temor nascido com a ditadura. “Nos Estados Unidos, símbolo da democracia, ela já existe.” Em sua opinião, “brasileiro é muito bonzinho com quem deve”.
Alessandro Cristo
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