16 de julho de 2010
A proposta frequenta as rodas de conversas há pelo menos três anos. No Brasil, a ideia é atribuída a uma tese de doutorado dos anos 1970. Desde o ano passado, porém, a chamada execução fiscal administrativa deixou de ser apenas um sonho ruim para os devedores, e se tornou uma ameaça bem real. Um projeto de lei elaborado pelo Executivo começou a tramitar em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, e virou alvo de um bombardeio dos advogados. A OAB de São Paulo cogitou cassar a licença dos procuradores que usarem o novo método, alegando que a constrição de bens é tarefa do Judiciário, não de advogados.
Tudo se resume a uma transição de esforços, como gosta de dizer o procurador da Fazenda Nacional Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Esta é a primeira de duas entrevista feitas pela revista Consultor Jurídico exclusivamente sobre o assunto. A segunda, com o tributarista Gilberto Fraga, advogado do escritório Fraga, Bekierman & Pacheco Neto Advogados e membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-RJ, será publicada neste sábado (17/7).
Um dos responsáveis pela discussão do projeto, Godoy explica que a ideia não é dar às procuradorias o poder de julgar, mas apenas de encontrar os bens dos devedores, tarefa que hoje só pode ser feita depois que o juízo aceita a execução fiscal e cita o contribuinte. Por causa da lentidão da Justiça e da burocracia processual, esse trabalho consome muito esforço e tempo, poupados no novo modelo.
O principal objetivo é levar ao Judiciário discussões em que o risco de tomar um chapéu seja mínimo. Todas as dívidas já iriam para execução garantidas, com bens bloqueados, o que torna o termo execução fiscal administrativa uma distorção, já que apenas a penhora fica com o fisco.
Na lista de prioridades, diferente em relação à atual prevista na Lei de Execução Fiscal, vão para o topo garantias mais líquidas, como dinheiro, valores em contas correntes e aplicações financeiras, ações e títulos de crédito, e saem aquelas de difícil avaliação, como pedras preciosas, navios e aeronaves.
Para permitir o raio-X nas posses dos devedores, o fisco colocará à disposição das procuradorias estaduais, municipais e federal um cadastro nacional que, pelo nome, justifica o terror dos contribuintes. O novo Sistema Nacional de Informações Patrimoniais (sigla SNI) reunirá nome, endereço, renda e patrimônio de cada inscrito nos cadastros de pessoas físicas e jurídicas da Receita Federal. Integrado com os Detrans, o Bacen e cartórios de registro de imóveis, por exemplo, o SNI permitirá o bloqueio imediato de alienação e movimentação de valores e bens, por ordem de qualquer procuradoria que o adote.
O Projeto de Lei 5.080/2009, que prevê a penhora pelo fisco sem o aval da Justiça, tramita em conjunto com outros três. Transação fiscal, que permite a negociação de juros com os devedores, dação em pagamento, que dá a permissão de se pagar uma dívida com um bem antes que ela seja executada, e uma lei complementar alterando o Código Tributário Nacional para legitimar as mudanças são propostas que caminham de mãos dadas no Legislativo, e ainda estão em fase de discussão em audiências públicas.
Uma delas acontecerá no Rio de Janeiro no próximo dia 20 de julho, mas não será promovida por deputados. A OAB do Rio convidou procuradores, advogados e juízes para um debate franco sobre o projeto de penhora pelo fisco. Entre os expositores estarão o procurador-regional da Fazenda Nacional no Rio, Paulo César Negrão de Lacerda, os juízes federais Marcus Livio Gomes e Maria do Carmo Freitas Ribeiro, o tributarista Gilberto Fraga, membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ, e a advogada Daniela Gusmão, presidente da comissão seccional e membro da de Assuntos Tributários do Conselho Federal da OAB. O evento será organizado na sede da entidade, das 10h às 13h. Clique aqui para saber mais.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual foi o intuito de tirar da Justiça e passar para a fase administrativa da cobrança a tarefa de localização e penhora dos bens de devedores?
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy — As coisas não podem ficar como estão. No ano de 2009, 32% das ações do Judiciário foram execuções fiscais, o que equivale a 30 milhões de processos. Isso porque o CNJ ainda não recebeu dados de todos os tribunais. A proposta colabora com a Meta 3 do Conselho Nacional de Justiça para 2010, que consiste em diminuir em 20% as execuções fiscais, já que elas só iriam para a Justiça depois da penhora, que toma muito tempo.
ConJur — Um projeto como esse passa em ano eleitoral?
Arnaldo Godoy — Como ele tramita em caráter de urgência, não há dúvida de que pode ser aprovado. Na verdade, é um conjunto de quatro projetos. São três leis ordinárias: uma de transação, uma de execução fiscal administrativa e uma de dação em pagamento. Para que sejam implementadas, é preciso alterar o Código Tributário Nacional por meio de uma lei complementar.
ConJur — O que muda com o projeto de execução administrativa?
Arnaldo Godoy — A primeira mudança é referente à questão da penhora, que vai se chamar constrição preparatória. Hoje, o Judiciário é o intermediário da penhora. A nova lei prevê um modelo diferente. Será a Fazenda Pública credora quem vai localizar e bloquear os bens.
ConJur — A penhora antecipada não tira do contribuinte o direito de discutir constrições no Judiciário?
Arnaldo Godoy — Qualquer pessoa que tenha um bem penhorado vai poder, a qualquer momento, reclamar no Judiciário. O artigo 3º do PL 5.080 submete as medidas ao controle da Justiça. Nada pode ser excluído do Poder Judiciário. A grande diferença é que a penhora será feita pelo fisco credor. O acesso ao Judiciário será prioritariamente na impugnação dos atos de penhora. Ele deixa de ser um cobrador e passa a ser um julgador.
ConJur — As penhoras não vão gerar ainda mais processos que questionarão as constrições, sobrecarregando o Judiciário?
Arnaldo Godoy — Ainda que a resposta seja positiva, também é profundamente feliz. Pelo menos estaremos discutindo com o valor já garantido. Nossa preocupação não é só com quantidade, mas com qualidade. Se vai aumentar a discussão do Judiciário, tudo bem, porque serão discussões muito mais vigorosas. A penhora está feita, ninguém vai sair perdendo. Se a penhora está feita, o contribuinte tem certidão positiva com efeito de negativa, e suspensão da exigibilidade do crédito.
ConJur — Como o devedor saberá se teve bem penhorado?
Arnaldo Godoy — Hoje, ele tem cinco dias para pagar depois da citação do ajuizamento da execução fiscal, caso contrário, se procede a penhora. No modelo que se pretende, ele vai ser notificado de que já existe uma penhora, e terá 60 dias para pagar, pedir parcelamento ou garantir. Os atos são concomitantes. Assim que a administração pública determina a notificação, já manda fazer a constrição preparatória.
ConJur — Mas isso não pega o contribuinte de surpresa?
Arnaldo Godoy — Só se faz a inscrição em dívida ativa depois do esgotamento do processo administrativo. O devedor já discutiu na fiscalização, na delegacia de julgamento e no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Qual é a surpresa?
ConJur — E no caso de débitos que já estejam inscritos em dívida ativa quando o projeto for aprovado?
Arnaldo Godoy — É bom o devedor correr para parcelar ou pagar. O projeto não é soft law, um “negocinho bonitinho”. O Estado precisa de recursos e não pode ter o estoque em dívida ativa que tem. Nenhuma das pessoas que têm inscrição em dívida ativa pode alegar que foi pega de surpresa. Ela tem obrigação de manter o fisco informado sobre seu endereço. “Mas penhoraram o dinheiro da operação da minha avó”, alguem, pode dizer. Nesse caso, peça o desbloqueio no Judiciário.
ConJur — O procurador desempenhará o papel de juiz?
Arnaldo Godoy — Juiz é aquele cuja decisão influencia o processo com ou sem julgamento de mérito, é aquele que determina à polícia que faça alguma coisa. Todo agente administrativo, com maior ou com menor intensidade, tem o privilégio de uma certa jurisdição, mas não é juiz. Essa atividade de determinar o que fazer ou deixar de fazer é da própria atividade administrativa. A diferença é que penhorar não será mais um ato judicial.
ConJur — Haverá contraditório nesse caso?
Arnaldo Godoy — O artigo 7º da proposta diz que o devedor pode, depois de 30 dias da notificação, arguir perante a Fazenda pública que ele pagou, ou que já fez compensação. Nada obsta que, não atendido o seu pedido, o contribuinte vá ao Judiciário. Não se subtrai a ida ao Judiciário. Se acrescenta uma possibilidade no administrativo.
ConJur — Só os procuradores poderão penhorar?
Arnaldo Godoy — É o procurador quem vai penhorar. Além dele, haverá a figura do oficial da Fazenda Pública, que fará o ato concreto, entregar o papel, como o oficial de Justiça. Isso vai depender de lei complementar. Senão, teremos que utilizar as pessoas que já trabalham na Procuradoria.
ConJur — Que tipo de bens podem ser penhorados?
Arnaldo Godoy — A proposta não tem um artigo sequer que fale de ordem de penhora. Ela deixa a Fazenda pública exercer juízo de valor e penhorar aquilo que tem mais liquidez, especialmente dinheiro. O modelo de penhora que nós temos hoje é o do artigo 11 da Lei 6.830 de 1980, uma ordem de penhora que já não condiz com a realidade. O modelo mais moderno vai em cima primeiramente do dinheiro vivo na conta bancária, via BacenJud. Depois vêm as propriedades imobiliárias e automóveis.
ConJur — Em relação ao tempo em que o fisco poderá ficar de posse do bem, quais as determinações do projeto?
Arnaldo Godoy — Essa é uma questão casuística que vai ter que ser resolvida caso a caso. O projeto dá as linhas gerais, mas o regulamento vai ter de explicar. Prioritariamente, as definições virão da jurisprudência administrativa e do Judiciário. O dinheiro é uma coisa, a fiança bancária é outra coisa, o seguro garantia é outra ainda, a penhora de um bem imóvel é outra, a de um crédito é uma outra, e assim por diante.
ConJur — Em caso de uma penhora equivocada, a administração pública poderia ser obrigada a pagar lucros cessantes à empresa prejudicada?
Arnaldo Godoy — Se houver constrição de dinheiro, a Fazenda terá três dias para ajuizar a execução fiscal, sob pena de ineficácia imediata da constrição, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 17 do projeto. No quarto dia, o Judiciário já está falando. Em quatro dias ninguém vai morrer. A questão do lucro cessante é muito casuística e vai ter que ser vista caso a caso. A regra geral é a do artigo 37 da Constituição, da responsabilidade objetiva do Estado, que quando causa dano, tem que reparar.
ConJur — A criação do Sistema Nacional de Informações Patrimoniais, o SNI, colocará à disposição dos fiscos federal, estaduais e municipais informações sobre bens, renda e endereço de todos os contribuintes. Isso não põe em risco o sigilo?
Arnaldo Godoy — Apesar da sigla infeliz, o SNI só terá informações já existentes no mundo cibernético. Todas as informações que farão parte desse cadastro são de domínio público. É a certidão do Detran, do cartório de registro de imóveis etc. A ideia foi aglutinar todas essas informações.
ConJur — A nova lei obriga contribuintes a ajudarem o fisco?
Arnaldo Godoy — O projeto prevê que quem dolosamente omitir, retardar ou prestar falsamente informações será responsável subsidiário pela cobrança da dívida. Concretamente falando, as pessoas têm o dever de prestar informações claras. Nos Estados Unidos, a multa é de US$ 250 mil para o contador que passar uma informação com o objetivo de iludir o fisco. É crime contra a administração pública. A lei pesa, mas esse é o objetivo, causar um reflexo positivo na cultura fiscal brasileira.
ConJur — O projeto autoriza fiscos estaduais e municipais a seguirem o mesmo modelo?
Arnaldo Godoy — Há uma projeção muito grande nos estados e municípios. Dá muitos instrumentos de cobrança, torna as coisas muito mais céleres e firmes.
ConJur — Há prefeituras que não têm procuradores, e contratam advogados para auxiliar nas execuções fiscais. O mesmo poder dos procuradores poderia ser exercido pelos advogados?
Arnaldo Godoy — Eu quero imaginar que a penhora administrativa é uma faculdade da administração pública. Tanto é que se chama penhora administrativa. Não é uma autorização, um cheque em branco, para que qualquer advogado terceirizado execute. Por outro lado, isso fortalece uma das coisas mais importantes que esse país tem para discutir, que é o federalismo. Nós não podemos ter uma regra de cobrança para a União, outra para o estado e uma terceira para o município.
ConJur — Uma das críticas ao projeto é que ele não foi suficientemente debatido. A Ordem dos Advogados do Brasil alega não ter sido chamada à discussão. A proposta já foi exposta à sociedade?
Arnaldo Godoy — Essa matéria tem sido discutida há dois ou três anos. Não sei por que, da noite para o dia, começou a grita geral. No relatório da OAB, ela diz que nunca foi convidada para participar da discussão. Isso é contraditório, já que no próprio relatório um dos conselheiros federais de São Paulo afirma que discute o projeto há três anos. Já houve audiência pública em Brasília, no Superior Tribunal de Justiça, e na Câmara dos Deputados, onde a deputada Manuela D’avila (PCdoB-RS) discutiu a transação tributária, que é um dos contingentes do projeto.
ConJur — Já se falou em fiscais arrombando portas sem autorização da Justiça. A leitura que vem sendo feita do projeto está sendo correta?
Arnaldo Godoy — A divulgação de informações sobre o projeto tem sido parcial, os jornais têm sido muito agressivos. O assunto é tranquilo, mas está sendo usado como forma de galvanizar uma série de críticas contra a carga tributária, que não é o assunto. Falta imaginação institucional. As pessoas só querem fazer mais do mesmo, ter mais juízes, mais promotores.
ConJur — A que se deve isso?
Arnaldo Godoy — Em parte ao fato de que a cobrança vai finalmente seguir um modelo mais rigoroso, mais efetivo. Nossa execução fiscal é de 1980, baseada em uma lei que reproduziu um decreto de 1938, do governo Getúlio Vargas. Nosso modelo é atrasado, não tem mecanismos concretos de obrigação.
ConJur — As críticas estão aumentando a resistência à proposta?
Arnaldo Godoy — O resultado desse tipo de cobertura é que as pessoas não leram o projeto e não gostaram, porque está se fazendo disso uma coisa escatológica, de fim de mundo. A maioria das informações é deturpada. Um diz que agora o fiscal da receita vai poder arrombar a casa e pegar o que tem lá dentro. Outro fala que o procurador da Fazenda vai ser juiz. Mas jamais houve no projeto previsões nesse sentido. Outros dizem que o projeto rompe com a presunção de inocência. Mas a presunção de inocência é do Direito Penal, não do Tributário. A presunção é outra. Quando o débito é inscrito em dívida ativa, ele é líquido em favor do fisco, de acordo com o artigo 3º da atual Lei de Execução Fiscal. Ela prevê que o título é líquido, certo e executivo até que se prove o contrário. O artigo 185 do Código Tributário Nacional presume que qualquer contribuinte inscrito em dívida ativa que aliene imóvel, fraudou.
ConJur — A polêmica ajuda a pensar melhor?
Arnaldo Godoy — A ousadia do projeto tem que ser elogiada. Há dois anos atrás, as discussões de Direito Tributário era, sobre formalidades lógicas, ninguém colocava em pauta a administração fiscal. Essa é a grande mágica do advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. Ele está fazendo com o Direito Tributário o que o ministro Gilmar Mendes fez com o Supremo Tribunal Federal. É uma revolução, que está levando as pessoas a discutir coisas sobre as quais ninguém parava para pensar.
ConJur — O projeto também não é unanimidade entre os procuradores.
Arnaldo Godoy — Desagradaria alguns setores da fazenda porque muitos nem sequer saberiam por onde começar o trabalho. Sempre existe a grita de que não temos gente para fazer tudo isso. Mas no serviço público, primeiro se cria a ação, e depois se providencia o contingenciamento.
ConJur — A execução fiscal é um problema para o Judiciário, que não dá conta de desovar todos os processos a contento. O que faz crer que os procuradores conseguirão?
Arnaldo Godoy — Toda energia que o procurador gasta hoje no Judiciário, indo atrás de processos que não chegam a lugar nenhum, vai servir agora no administrativo. Não se vai ampliar o trabalho do procurador, mas realocar a energia de trabalho. No âmbito administrativo, as coisas têm um passo mais rápido.
ConJur — Mas no caso de penhora, os prazos serão menores para o ajuizamento das execuções.
Arnaldo Godoy — Será necessária uma transição. Processos que já estão na Justiça irão todos para a Fazenda. Mas isso não é um passo para trás, e sim para frente. Nós vamos ter que dar as mãos e unir forças. Claro que a transição vai ser complicada. No começo, vai ser difícil, até essas rotinas e padronizações entrarem nos eixos. Com a digitalização dos processos está acontecendo a mesma coisa. Hoje, a tramitação está demorando mais do que ontem, porque é preciso digitalizar um por um. Mas quando estiver tudo pronto, será uma maravilha.
ConJur — Há previsão de contratação de mais procuradores?
Arnaldo Godoy — A ideia é justamente o contrário, combater o “mais do mesmo”. Não podemos propor uma saída alternativa e colocá-la em prática com mais gente ainda.
ConJur — O modelo a ser implantado é o mesmo já usado em outros países?
Arnaldo Godoy — A Espanha tem execução fiscal administrativa, o México também. O Chile, que tem o Direito bem avançado, também tem. O Peru, nosso vizinho, tem, assim como a Venezuela, a Bolívia, e a Argentina, que tem um modelo híbrido, meio administrativo, meio judicial. Nos Estados Unidos, na França e em Portugal também existe. Essas experiências externas são experiências com as quais temos que aprender. Em qualquer lugar do mundo, execução fiscal é uma coisa muito drástica. No modelo brasileiro, é frouxa. Até a ação de cobrança ser ajuizada, o débito está quase prescrito, ninguém mais sabe quem é o devedor, e os bens já desapareceram.
ALESSANDRO CRISTO
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